Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

    Aroldo Pinheiro

    Se for abençoada, não faz mal

    Zé Camargo chegou a Roraima com os primeiros paraibanos. Nem sabia dizer como se deu a mudança. Contava que, bebendo com amigos em Catolé do Rocha, acompanhou-os na subida em pau-de-arara. Apesar de ter medo de água, aboletou-se num ita. Sem nunca ter visto uma máquina daquelas, embarcou num DC-3. Quando Camargo curou-se do porre, estava deitado numa fianga, em quartinho safado da pensão de Dona Alice, na avenida Sebastião Diniz.

    Trabalhou como ajudante de pedreiro, limpador de quintais, vigia de obra, menino de recado de putas. Nada dava certo: o vício na marvada pinga punha tudo a perder. Amigos se cotizaram e, para ele, montaram um boteco. Tinham que vigiá-lo, pois, se dessem mole, Zé Camargo entornaria todo o estoque de pinga.

    Não há organismo que resista à quantidade de álcool que Camargo consumia regularmente. Um dia, em coma alcoólico, foi conduzido ao Hospital Nossa Senhora de Fátima. Chegou à casa de saúde quase morto. Seu Cosme, homem que dedicou a vida àquele hospital, e as madres enfermeiras, sempre prestativas, conseguiram trazer Camargo de volta à vida.

    Seis meses internado, vivendo à base de aguadas sopinhas e secos grelhados. O paraibano recebeu alta. Antes, porém, madre Aquilina chamou- o para papo sério: “Meu filho, você tem que cortar o álcool de sua vida. Do contrário, você é um homem morto”.

    Zé Camargo voltou para a direção do boteco. Resistiu nos primeiros dias, mas, logo, capitulou e retomou a vida de caneiro. Numa segunda-feira, por volta das 11 da manhã, o paraibano entornava um traçado, “pra abrir o apetite” quando deu com madre Aquilina entrando no boteco. Zé não teve tempo de esconder o copo ou disfarçar. Olhando nos olhos de cabra morta do caneiro, a irmã-enfermeira aproximou-se do paraibano e disparou:

    - Seu Zé Camargo, o senhor não merece um pingo de confiança. Falta-lhe amor pela vida.

    Antes que a freira abrisse o resto da ladainha, o bebum apelou:

    - Madre, esse traçado é feito com quinado São Raphael, conhaque São João da Barra e cachaça São Francisco. Duvido que três santos fortes como esses prejudiquem um pobre temente a Deus como eu.

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    Belém, belém...

    No início o ruído à minha volta tornou-se tão constante – e irritante – que prometi a mim mesmo que não ia aderir ao modismo.

    Logo, vi que não ter o aplicativo me tornava um alienado. Capitulei e troquei meu antigo e querido aparelho celular analógico por modernoso smartphone – com tantas utilidades que, tenho certeza, não vou utilizar nem 10% delas até o dia de minha morte – e instalei o WhatsApp.

    No inicio, me apaixonei pela nova modalidade de comunicação. A paixão começou a sumir no dia em que começaram a me adicionar a grupos e eu passei a receber mais de mil mensagens por dia. Destas mensagens, poucas eram aproveitáveis.

    As mesmas piadinhas sem graça são enviadas por quase todos os integrantes de diferentes grupos. Mensagens de “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “bom fim de semana”, “bom domingo” cheias de flores, animaizinhos, crianças, paisagens e músicas românticas passaram a ocupar o espaço de memória de meu aparelho e a encher de impaciência o meu saco.

    Filmes de sacanagem e sexo explícito e vídeos com pegadinhas ridículas fazem parte do pacote.

    Comecei a dedicar boa parte de meu precioso tempo a excluir-me de grupos que tinham me adicionado sem me consultar e deletar mensagens idiotas e desinteressantes. Comecei, também, a ter ódio do WhatsApp.

    Usuários do WhatsApp acham que temos de estar prontos para ler, ver, ouvir e, se for o caso, responder às mensagens que nos enviam a qualquer hora. Há os chatos que te encontram na rua e, mostrando o display de seus aparelhos, perguntam: “Tu viste essa?”

    E o aplicativo é fofoqueiro. Se você, por algum motivo, alega não ter recebido determinada mensagem, o interlocutor corta: “Recebeu sim. Às 10h43 os pauzinhos ficaram azuis. Além do mais, vi que tu ficaste on-line até as 11h37; falavas com quem?”

    Já aconteceu de ouvir o sinal anunciando mensagem às três da manhã. Com filhos e mãe - de 92 anos de idade - morando fora do Estado, vi-me obrigado a despertar, revirar-me na cama com todas as dores que a coluna me dedica, pegar o celular na mesinha de cabeceira, digitar a senha do aparelho e ler: “Dormindo?” Resposta: “Estava até a hora que você me mandou a porra dessa pergunta!” Claro que a vontade de digitar um palavrão é grande.

    Nada contra a modernidade. Celular é útil e WhatsApp é prático, mas, por favor, tenhamos um pouco mais de respeito como nossos semelhantes.


    Em tempo: se alguém me adicionar a algum grupo depois de publicado esse desabafo, pode considerar-se meu inimigo. Belém, belém, nunca mais fico de bem.

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    Gravidez temporã

    Há muito tempo, o Departamento de Trânsito do Distrito Federal foi exemplo de bom atendimento e respeito ao público. As cidades incharam, a frota automobilística, proporcionalmente, cresceu mais do que a população, e o Detran-DF, infelizmente, parou no tempo. Perdeu a corrida.

    A qualidade dos serviços deixa a desejar. Se você não madrugar às portas da repartição, dificilmente conseguirá resolver seus problemas.
    Cedo, entrei na fila para vistoriar o surrado Corsa. Às 11h30, saí do veículo para alimentar pulmões e estômago. Nicotina e alcatrão para o primeiro e um salgadinho safado para o segundo.

    Lá longe, vi uma figura que me pareceu familiar. Seria o Mangulão?
    O corpo arredondado, a barriga proeminente, os cabelos esbranquiçados e aqueles óculos que eu não conhecia provocaram dúvidas. Os mais de dois metros de altura e o desajeitado jeito de andar, porém, me deram a certeza. Ali pertinho de mim, estava um colega de faculdade. Colega de 40 anos atrás.

    Surpresa maior: ao seu lado, em vestido solto cobrindo enorme barriga, Celinha, a sua namorada dos nossos tempos de CEUB.

    - Mangulão!?!?

    A figura me estudou por alguns minutos e, logo, um sorriso se abriu:

    - Índio? Não é possível! Celinha, ‘ocê num tá reconhecendo o Índio?

    Abraços, cumprimentos, perguntas, lembranças...

    - Puxa vida, estou feliz pelo reencontro. Mais feliz por saber que vocês casaram e que ainda tão fazendo menino.

    Mangulão abriu um sorriso, puxou-me pro lado e confidenciou:

    - Que menino que nada, rapaz. Eu tou mexendo com revenda de automóveis e tenho que vir ao Detran todos os dias. Com essas filas enormes, eu não dou conta de resolver meus negócios. – E arrematou. – Resolvi comprar uma barriga postiça para a Celinha e ela, diariamente, monta a gravidez para ter atendimento preferencial...

    Com um tapa nas minhas costas, ele encerrou:

    - Tu tá pensando que eu sou leso? Já faz mais de um ano que ela tá “grávida”...

    É. Zé Eustáquio, o Mangulão, meu colega de faculdade, não mudou nada.

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    Erasmo quase parou o Brasil

    Atendendo convite do governo, que precisava de professores para expandir a rede escolar, Erasmo Sabino de Oliveira mudou-se para Roraima. Em Boa Vista, enquanto se dedicava à educação de adolescentes, viu possibilidades de ganhar dinheiro no setor imobiliário. Se deu bem.

    No final do século passado, numa dessas campanhas de governo em tempo de crise, a Caixa Econômica Federal alardeou que teria bastante dinheiro para financiar quem quisesse investir em casas populares.

    Ao saber que existiria verba fácil para o setor, o empresário, destemido, resolveu que aquele seria o momento de alavancar seus negócios.

    Ao ver o projeto de Erasmo, o gerente do banco federal assegurou-lhe que, depois de análise da documentação, o dinheiro seria liberado. Com aquela garantia verbal, para ganhar tempo, o potiguar resolveu iniciar a construção de seu conjunto habitacional.

    Depois de um mês de desembolso, a fonte secou e o financiamento oficial não havia saído. “É questão de dias”, garantiu-lhe o gerente. Para não parar, Erasmo passou a comprar fiado o material necessário para dar andamento nas obras.

    Sessenta dias se passaram e o empréstimo não tinha sido aprovado. O gerente disse que logo, logo, a grana estaria na conta do empreendedor. Desmobilizar equipes redundaria em prejuízo. Além do mais, sem reservas, como pagar rescisões trabalhistas? A saída: pedir dinheiro emprestado a agiotas e tocar o que havia iniciado.

    Já bastante endividado no comércio e pendurado em mãos de agiotas, Erasmo soube que a carteira para o financiamento que ele pleiteara havia sido fechada.

    Desespero. Apelar pra quem?

    Ao ouvir lamúrias do empresário, Marivaldo Barçal, advogado, prometeu levá-lo a Brasília para falar com Romero Jucá. Para o influente senador, não seria difícil mobilizar a Caixa Econômica Federal e resolver o problema de Erasmo.

    Passagens foram compradas com cheque pré-datado. Difícil foi convencer dona Dalva, proprietária da boutique Shalon a vender-lhe fiado um paletó.

    Numa sexta-feira, Marivaldo e Erasmo embarcaram juntos para encontrar-se com o senador às oito horas de segunda na capital federal.

    No gabinete, além do senador, estavam presentes uns oito homens vestindo elegantes e finos paletós pretos: os picões da Caixa Econômica Federal. Romero Jucá iniciou o discurso:

    - Senhores, esta reunião foi agendada para ver se, juntos, conseguimos encontrar uma solução para o problema deste grande empresário roraimense. Erasmo enfrenta sérias dificuldades desde que a Caixa Econômica fechou uma carteira de crédito e está a ponto de parar um dos maiores empreendimentos imobiliários de nosso Estado.

    Com um olhar, o vice-presidente consultou o presidente da Caixa Econômica Federal; sentindo-se autorizado a falar, dirigiu-se ao empresário:

    - Quantas casas o senhor está construindo?

    Apesar de nervoso, Erasmo respondeu alto:

    - 55.

    Os homens da Caixa se entreolharam, o senador Romero Jucá mostrou-se nervoso. O vice-presidente da instituição reinquiriu Erasmo com certo sarcasmo:

    - Quantas?

    Erasmo respondeu pausada e nervosamente:

    - Cin-quen-ta e cin-co.

    Os homens da Caixa abriram risadas, Romero Jucá ficou vermelho de vergonha; o presidente fechou:

    - Senador, problemas desse tamanho, a gente resolve com um telefonema...

    Erasmo ficou satisfeito com a promessa de que seu financiamento seria liberado no dia seguinte. Depois de agradecer o senador Romero Jucá pela ajuda, pediu-lhe R$ 200 reais emprestados para pagar o táxi.

    - Senador, problemas desse tamanho, a gente resolve com um telefonema...

    Erasmo ficou satisfeito com a promessa de que seu financiamento seria liberado no dia seguinte. Depois de agradecer o senador Romero Jucá pela ajuda, pediu-lhe R$ 200 reais emprestados para pagar o táxi.

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    O juiz e o BMW

    Uma noite, em dezembro de 1998, antes de mais uma viagem à terra de Tio Sam, eu tomava uísque com Adilson Dantas, na época juiz do Trabalho em Boa Vista. Ao sair de minha casa, no portão, meu amigo encomendou: “Se passares pela Biscayne Boulevard, dá uma paradinha e vê o preço de um BMW 325 pra mim”.

    Na época, o rombo deixado pelo juiz do Trabalho Nicolau dos Santos Neto e o ex-senador Luís Estêvão na construção da sede do Tribunal do Trabalho, em São Paulo, ocupava todos os espaços da mídia nacional. Um pouco da imprensa estadunidense também dava destaque ao juiz ladrão, que ficara conhecido pelos gastos em restaurantes de luxo, coleção de carros importados e investimentos milionários que fazia em Miami.

    Resolvido o que eu fora tratar, saí de meu hotel em South Beach para pequenas compras no centro da capital da Flórida e, eis que, ao parar num sinal vermelho, olho para a placa de identificação da avenida e leio “Biscayne Boulevard”. Lembrei-me da incumbência que Adilson me dera de brincadeira.

    Duas quadras adiante, entrei em imensa e luxuosa loja de veículos europeus. O terno do sujeito que me recebeu era mais caro do que a surrada F-1000 e o rodado Fiesta que ocupavam a garagem de minha casa. Somados.

    Eu, vestido com camiseta, calça jeans desbotada e surrado tênis do dia a dia, não me apequenei à frente vendedor. Cheio de moral, disse-lhe que estava interessado num BMW 325.

    O homem conduziu-me a uma mesa, mostrou-me panfletos, falou da potência, do conforto e dos opcionais para aquele modelo de máquina alemã. Disse-me que só poderia entregar o veículo de meus sonhos em, pelo menos, oito meses a partir do pedido.

    Passo seguinte: preencher formulário para futuros contatos. Ao perguntar meu nome, disse-lhe chamar-me Adilson Dantas; naturalidade: brasileira; profissão: juiz do Trabalho.

    Quando soube de minha procedência e ocupação, os verdes olhos do vendedor brilharam. Claro que, para completar a ficha – e a brincadeira –, passei endereço, telefone e e-mail de Adilson.


    Saí da loja sobraçando uns dois quilos com ricos impressos sobre BMWs.


    De volta ao Brasil, tomando umas doses de uísque, contei a história para Adilson e entreguei-lhe todo o material que eu conseguira sobre o “BMW dele”.

    Até pouco tempo antes de transferir-se para a Justiça do Trabalho amazonense, Mr. Adilson Dantas recebia mensagens do elegante e insistente vendedor querendo fechar negócio num BMW 325.

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    Visita inesperada

    Boa Vista, anos 1960, ruas empoeiradas, sem asfalto, sem calçadas. Num dia de ponto facultativo, depois de tomar preguiçoso café da manhã, Petrônio Mota recostou-se no muro de sua residência, na esquina da rua Coronel Mota com avenida Benjamin Constant, acendeu um cigarro e abandonou-se em pensamentos olhando para o movimento da cidade sem movimento.

    Na avenida, lá perto do grupo Escolar Oswaldo Cruz, debaixo de guarda chuva, usando sombras dos pés de “dona téri” para proteger-se do sol escaldante, surge figura conhecida.

    Depois de cruzar a rua Barão do Rio Branco, Davi Cruz, em indefectíveis calça e camisa de linho branco, atravessa a avenida para aproveitar a sombra de frondoso fícus italiano da frente da residência de Áureo Cruz. Com a visão cerceada pelas abas do chapéu e da sombrinha, o policial ouve a saudação:

    - Bom dia, Davi.

    A voz rouca, de garganta consumida pelos muitos pau-roncas fumados desde a infância, responde:

    - Bom dia, Petrônio. Tudo bem?

    - É. Vendo o tempo passar. Aonde você vai com tanta pressa?

    - Vou aqui na casa do Santiago, tenho assunto urgente pra tratar com ele e com Maria Mota.

    - Entra prum cafezinho, homem? - Tá bom. Já que você insiste, vou parar pra fumar um cigarro e prosar um pouquinho.

    Entraram, sentaram-se à longa mesa da varanda e, entre uma e outra xícaras de café e muitos cigarros, se abandonaram em conversa. Quase monólogo, pois seu Davi dominava a prosa. Falou de caçadas, de pescarias, de doenças, de saudades, de vidas e de mortes.

    Convidado para almoçar, Davi diz que “vai fazer só uma boquinha” e se farta com a rabada preparada por dona Dorzinha. Rabada com arroz e farinha d’água, grossa como piçarra, comida de macho, como o caboco.

    Antes do suculento doce de caju, Davi lembra: “Rapá, eu tenho que falar com Santiago”.

    Água fresca do pote, mais café, mais conversa. Davi falou sobre a filha que morava no Rio de Janeiro, sobre o arrependimento que sentia por ter comprado um jipe velho, Candango, que só vivia no prego, sobre a seca que não dava chance de o gado engordar, sobre a alta constante do custo de vida.

    E chegou a noite.

    Por cima da cerca de pau-rainha, Davi olha para a residência de Santiago, do outro lado da rua, volta-se para Petrônio e diz:

    - Minha Nossa Senhora, o tempo passou e Santiago tá de saída com a Maria.

    Ansioso para que a visita vá-se embora, Petrônio não faz comentário. Davi acrescenta:

    - Tá bom, eu volto amanhã. Se você estiver por aqui, eu dou uma paradinha pra botar assuntos em dia...

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    O corte

    Ele se diz italiano, mas nunca mostrou documento que o comprove. Diz também que morou em Londres, mas até hoje não apresentou registro de sua passagem pela terra de Winston Churchill. Independentemente disso, o cara é gente boa.

    Descontrolado com números e orçamento, ele está sempre no vermelho. Por misturar salário com bicos, nunca sabe quanto ganha. Nem quanto gasta.

    Divorciado, assumiu mais uma despesa mensal: pensão alimentícia. Sabendo que falha nesse tipo de pagamentos é uma das poucas coisas que dá cadeia, ele prioriza depósitos nas contas da ex e da filha.

    A coisa pegou. Muita farra, muita muiezada, contas começaram a se acumular. Em determinado momento, ele passou a sortear quem seriam os felizardos a receber atrasados.

    Imposto Predial foi o primeiro compromisso a ser botado no escaninho de “pago se um dia puder”. Em seguida, o consórcio. Conta de telefone residencial também entrou no rol. Seguida por telefone celular.

    Os ímãs da porta da geladeira já quase não suportavam o peso de tantos boletos quando ele decidiu atrasar contas de água e de luz.

    Perdido, ele passou a se preocupar com o dia em que sua energia elétrica seria cortada, pois,na porta do refrigerador, três papelotes da Eletrobras e amontoavam à espera de pagamento.

    Certa noite, ao apelar para a caderneta da pequena mercearia da vizinhança, conseguiu três latas de sardinhas, um quilo de farinha, seis ovos, meia dúzia de limões e o aviso: “Daqui pra frente, só com dinheiro, viu?”.

    Em casa, ele destampou a meiota de caninha Pitu e embriagou-se pensando na vida.

    Calor. Calor infernal. Ele acordou e viu que o condicionador de ar estava desligado. Acionou o interruptor de luz. Nada. Correu à geladeira em busca de água para tirar o gosto de cabo de guarda chuva que lhe vinha à boca e viu que o branco vazio dera lugar a uma penumbra sobre as poucas garrafas de H₂O que descansavam, suarentas, nas grades enferrujadas. Pensou: “Cortaram minha luz”.

    Lá fora, um barulho ensurdecedor, diferente. Ao abrir a janela cuidadosamente, deu com fios elétricos espalhados na rua e um caminhão Munck retirando o poste de frente de sua casa.

    Assustou-se. Conseguiu pensar: “Esse povo não tem consideração: com três meses de atraso, eles agora levam até o poste”.

    Com calma, deu-se conta de que, em operação preventiva, os funcionários da companhia energética faziam manutenção de rede e colocavam postes de concreto no lugar de similares de madeira.

    Aliviado, ligou para a ex-mulher, pediu-lhe dinheiro emprestado, pagou duas das contas de luz em atraso e voltou a tocar a vida como vinha tocando.

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    Praga de mãe

    E ninguém queria mais a responsabilidade de ser governador do Lions Cube de Roraima. É que, para levar a coisa a sério, demanda tempo e muitos que abraçaram a missão ficaram momentaneamente sem condições de abraçar seus negócios.

    Erasmo se viu praticamente forçado a assumir o cargo, no Distrito L-1, composto pelos estados de Roraima, Amazonas, Rondônia e o Acre. Na época, diretores do Lions no Amazonas, muito influentes dentro da Zona Franca, tiveram facilidade arrecadar fundos entre empresários e promover a maior convenção leonística jamais ocorrida no Brasil.

    Iniciando-se no mundo dos negócios, o empresário de Roraima zerou saldo de conta bancária e rapou o fundo do tacho para, comparecer ao evento. Ali, decidir-se-ia quem iria a Hong Kong participar de convenção mundial da associação beneficente.

    Erasmo Sabino foi o indicado. Por um lado, Sabino festejava a chance de visitar o outro lado do Planeta. Antevia, também, a oportunidade de encontrar-se com seu irmão, Genivaldo, diplomata, que à época, servia na representação brasileira em Pequim. O problema seria dinheiro para bancar despesas pessoais na grande viagem. O potiguar usou a máxima “já que tá gostoso deixa”.

    No encerramento da convenção amazonense, muitos dos presentes teriam que fazer pronunciamentos. Erasmo, que até então só tinha discursado para alunos em sala de aula, apesar de ter rabiscado roteiro para improviso de sua fala, estava nervoso. Ficou ainda mais nervoso quando viu pessoas do naipe de Gilberto Mestrinho e Arthur Virgílio Neto sentados à mesa dos trabalhos.

    Apesar de alguns copos de cerveja, os belos discursos deixavam Erasmo com medo de fazer feio. “Como fazer bonito depois de um Mestrinho ou um Arthur Virgílio?”, pensava. Sabino até cogitou abandonar o recinto sem dizer nada. “Filho de Chico Fumeiro não foge da raia”, ponderou.
    Eis que o nome de Erasmo Sabino de Oliveira foi anunciado. Ao púlpito, como disfarce para seu nervosismo, o empresário ajustou o microfone e, sem abrir o roteiro que trazia no bolso do paletó,depois de saudar os presentes, desabafou:

    - É praga de mãe... A plateia não entendeu nada. Erasmo deu sequência: “Nunca em minha vida, eu pensei em fazer viagem internacional. Hoje, lembrei-me de minha mãe que, quando se via atentada, gritava a qualquer um de seus filhos: “Menino, vai pra China”. Meu irmão, Genivaldo, é diplomata e, hoje, mora em Pequim. Eu, dentro de poucos dias, estarei em Hong Kong. Se as coisas continuarem nesse embalo, logo, logo, todos os filhos de Chico Fumeiro, meu pai, terão ido ao outro lado do mundo pra cumprir a praga que dona Severina, minha mãe, rogou.

    Risos. Aplausos. Bem à vontade, Erasmo sentiu-se tranquilo e encerrou seu discurso. Até Mestrinho e Arthur Virgílio o aplaudiram de pé. No seu jeito simples de ser, Erasmo chorou.

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    Ordem Judicial

    Virou bagunça. Falta de vergonha impera nesse país. Do rádio ou da televisão, a qualquer minuto, de qualquer emissora, só se ouve falar em delações, mandados, depoimentos, prisões. Termos jurídicos se tornaram tão comuns que, noutro dia, ao dizer para o irmão que a mãe o estava chamando, a filha de minha vizinha ameaçou: “Se tu não for logo, ele vai te coercitivar”.

    A honestidade foi pras cucuias. Tenho saudade de pessoas como Waldir Abdala, Petrônio [Mota] Oliveira, Eurides do Carmo Macellaro Barreto e José Figueiredo Filho, homens que sempre trabalharam em setores financeiros do então Território Federal e viveram exclusivamente de seus salários.

    Pela administração do Território e do Estado passaram outros honestos, mas, pra mim, os quatro citados são suficientes para exemplificar verdadeiras mãos limpas.

    José Figueiredo Filho morreu há poucos dias. Com ele, eu gostava de prosear. Algumas vezes, poucas, invadi o quintal de “seu” Figueiredo só para um cafezinho e ouvir histórias interessantes da pequena e antiga Boa Vista.

    José Figueiredo chegou aqui no início dos anos 1960. Ocupou cargos de confiança em muitos governos. Isso num tempo em que, para ocupar cargo de confiança, a pessoa tinha que ser confiável mesmo.

    Figueiredo, entre outros cargos importantes, foi presidente da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima. Ele me contou que recebeu a companhia com muitas dívidas, principalmente com o INPS (hoje INSS).

    Desde sua criação, administradores da empresa estatal nunca tinham se preocupado com repassasses de valores cobrados de seus funcionários para o Instituto de Previdência. A dívida estava impagável. O governo do Território contava com uma anistia que não vinha.

    Sem caixa, o Instituto Nacional de Previdência Social fazia campanha para receber tudo que lhe era devido em todas as unidades da Federação. A ordem era “se não fizer acordo, cobrar judicialmente”.

    E eis que, certo dia, José Figueiredo Filho recebeu a visita de Otoniel Ferreira de Souza. O oficial de Justiça explicou ao presidente da Caer que estava ali para fazer acordo sobre as dívidas com o INPS. O manda chuva da estatal respondeu-lhe que a arrecadação mal dava para pagar funcionários, que as repartições públicas não quitavam seus débitos e que, assim sendo, não havia condições sequer de propor um acordo. Otoniel foi taxativo:

    - Seu Figueiredo, então nós vamos ter que penhorar alguns bens da Caer.

    O presidente sorriu, olhou seriamente nos olhos do oficial de Justiça e capitulou:

    - Otoniel, o terreno em que fica a administração da empresa pertence à União, os veículos que utilizamos pertencem ao governo do Território; a única coisa que pertence de fato à Caer é essa caixa d’água enorme que acabou de ser inaugurada. Pode empenhá-la.

    Ao ouvir aquilo, desanimado, o oficial de Justiça deixou o gabinete do presidente e, depois de conversar com o juiz de direito, nunca mais voltou para cobrar a Companhia de Águas e Esgotos de Roraima.

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    Acho que um tal de Alzheimer tá me devendo

    Boa parte dos que ultrapassam a barreira dos 60, como eu, têm medo de ouvir falar no alemão: Alzheimer. No mundo, mais de 35 milhões de pessoas sofrem com a doença; só no Brasil, há mais de um milhão e duzentas mil vítimas desse mal. Seu Zé faz parte dessa estatística. 

    Português, trabalhador, seu Zé chegou ao Brasil quando tinha 19 anos.

     

    Carpinteiro, começou trabalhando nas obras que se erguiam junto ao sonho de construir Brasília. Em 1959. Juntando dinheiro, montou marcenaria, que evoluiu para loja de móveis, que evoluiu para rede de revenda de eletrodomésticos, e, paralelamente, uma imobiliária. Ficou rico. Milionário.

     

    Homem bom, quando procurado, seu Zé ajudava amigos e parentes. Dinheiro ele não dava: emprestava. Fazia pequenos empréstimos com juros bem abaixo daqueles praticados por bancos. Ao emprestar algum trocado, exigia de volta conforme o combinado. Sem dispensa de juros. “Se não for assim, os vagabundos se acomodam”, dizia seu Zé, com forte sotaque lusitano.

     

    O português começou a variar. Passou a confundir situações, esquecer fim de histórias que começara a contar, fazia confusão até com os nomes dos oito filhos. Levado a médico, a família ouviu o que tinha medo de ouvir: mal de Alzheimer.

     

    Toda família tem uma ovelha negra. Joaquim era o problema na casa de seu Zé. Vagabundo, farrista, bon vivant, nunca soube o que é trabalho. Aproveitava-se do fato de ser o filho preferido e, contrariando princípios do portuga, conseguia e renovava empréstimos feitos pelo velho com a promessa de um dia pagar. Com juros, claro. 

     

    Seu Zé abria a carteira para Joaquim e anotava a nova operação com esperança de que um dia, quem sabe, o filho tomasse tenência, desse rumo à vida e pagasse o que lhe era devido.

    Manoel, filho mais velho do português, advogado bem sucedido no Rio de Janeiro, ligou para saber notícias do pai. Telefonema atendido por Joaquinzinho:

    - Tudo bem por aí?

    - Tudo beleza, mano.

    - E papai, como está?

    - Muito bem. Saudável, come com vontade. Fisicamente, muito bem mesmo. Psicologicamente, na fase ideal pra se pedir dinheiro emprestado: ele empresta e se esquece quanto e pra quem emprestou... 

     

     

    Acho que um tal de Alzheimer tá me devendo

    Boa parte dos que ultrapassam a barreira dos 60, como eu, têm medo de ouvir falar no alemão: Alzheimer. No mundo, mais de 35 milhões de pessoas sofrem com a doença; só no Brasil, há mais de um milhão e duzentas mil vítimas desse mal. Seu Zé faz parte dessa estatística.

    Português, trabalhador, seu Zé chegou ao Brasil quando tinha 19 anos. Carpinteiro, começou trabalhando nas obras que se erguiam junto ao sonho de construir Brasília. Em 1959. Juntando dinheiro, montou marcenaria, que evoluiu para loja de móveis, que evoluiu para rede de revenda de eletrodomésticos, e, paralelamente, uma imobiliária. Ficou rico. Milionário.

    Homem bom, quando procurado, seu Zé ajudava amigos e parentes. Dinheiro ele não dava: emprestava. Fazia pequenos empréstimos com juros bem abaixo daqueles praticados por bancos. Ao emprestar algum trocado, exigia de volta conforme o combinado. Sem dispensa de juros. “Se não for assim, os vagabundos se acomodam”, dizia seu Zé, com forte sotaque lusitano.

    O português começou a variar. Passou a confundir situações, esquecer fim de histórias que começara a contar, fazia confusão até com os nomes dos oito filhos. Levado a médico, a família ouviu o que tinha medo de ouvir: mal de Alzheimer.

    Toda família tem uma ovelha negra. Joaquim era o problema na casa de seu Zé. Vagabundo, farrista, bon vivant, nunca soube o que é trabalho. Aproveitava-se do fato de ser o filho preferido e, contrariando princípios do portuga, conseguia e renovava empréstimos feitos pelo velho com a promessa de um dia pagar. Com juros, claro.

    Seu Zé abria a carteira para Joaquim e anotava a nova operação com esperança de que um dia, quem sabe, o filho tomasse tenência, desse rumo à vida e pagasse o que lhe era devido.

    Manoel, filho mais velho do português, advogado bem sucedido no Rio de Janeiro, ligou para saber notícias do pai. Telefonema atendido por Joaquinzinho:

    - Tudo bem por aí?

    - Tudo beleza, mano.

    - E papai, como está?

    - Muito bem. Saudável, come com vontade. Fisicamente, muito bem mesmo. Psicologicamente, na fase ideal pra se pedir dinheiro emprestado: ele empresta e se esquece quanto e pra quem emprestou...

     

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    Aroldo Pinheiro

    O bem e o mal

    Sexta-feira. Dia de rabada no Restaurante da Família. Cheguei cedo. Apreciadores desse prato, preparado por dona Míriam, sabem que quem chega depois das 12h30 dança. Me deliciando com a carne suculenta, não pude deixar de ouvir conversa que vinha de mesa ao lado.

    Os rapazes têm pouco mais de 30 anos de idade. Conheço os dois desde pequeninhos. Doutor Balada - apelido que lhe foi dado pelos colegas de medicina - e Bip-bip - denominação que recebeu depois que trocou noites de farra por longas e cansativas corridas matinais – falavam sobre a nova vida e lembravam um pouco das farras loucas que fizeram até pouco tempo atrás.

    Pagodes e pegadas faziam parte dos relatos. Tudo mais ou menos na base do “lembra daquela noite?”. Essas lembranças não eram alimentadas por saudosismo ou por infelicidade nos dias de hoje, eram simplesmente recordações da loucuras e dos muitos atos irresponsáveis que praticaram em passado recente. Hoje, Bip-bip e Doutor Balada sentem-se felizes com os rumos que deram a suas vidas.

    Quem ouvisse os nomes citados por eles pensaria que escalavam uma dessas gangues galerosas: Batata, Camarão, Come-quieto, Calhambeque, Cavaco, Sem-futuro, Amarrado, Três-pernas, Chumbrega, Passa-quatro, Chupeta, Negão.

    Quando citado o nome de Negão, histórias interessantes surgiram. Farras loucas, claro. Farras que duravam até quatro dias. Pra eles, Negão era a prova de resistência alcoólica. “Ele só parava depois que todo mundo estivesse morto”, comenta Bip-bip.

    - Encontrei-me com ele há poucos dias... – Diz o médico. – Diferente, trabalhando duro, casado, dedicado à família. Nem parece que era o rei da bandalha. E virou católico. Desses de ir à missa todo domingo.

    Bip-bip confirma a informação. E acrescenta: “Encontrei-me com ele num casamento. Ali na igreja Nossa Senhora da Consolata. Falou-me das mudanças na vida dele e me convidou pra frequentar o templo com ele.

    Riram. Bip-bip acrescentou:

    - Nada contra. Acho até legal que ele tenha encontrado o caminho do bem. Mas fugi do convite. E justifiquei: “Negão, como os católicos têm esse negócio de contar pecados prum padre, se eu me ajoelhar no confessionário, vou ter que passar o resto da minha vida dentro da igreja. Só confessando os pecados que cometi no tempo em que eu era errado”.

    Riram muito. Viram que eu prestava atenção à conversa e emudeceram. 

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    Aroldo Pinheiro

    No cartão. Três vezes

    Ao longe, o azul do céu se misturava com o azul do mar. Mocinhas de corpos perfeitos passavam à sua frente. Quando ele se deliciava com a brisa que amenizava a quentura do sol, o despertador tocou.
    Que pena. Trabalhar.

    Levantou-se, meditou no vazo sanitário por alguns minutos, fez a barba, escovou os dentes, tomou banho pensando na beleza da praia que fizera parte de seu sonho minutos atrás. Teve vontade de voltar para a cama. Queria aqueles momentos de volta, mesmo sabendo que tinha sido um sonho.

    Trabalhar, cara!

    Cumprimentou o cachorro, abasteceu as tigelas com ração e água, verificou se tinha passado chave em todas as portas, checou cadeados. Pelas imagens no monitor, conferiu se todas as câmeras de segurança estavam funcionando, deu partida no carro, acionou o controle do portão elétrico e saiu de casa.

    No caminho, deparou-se com a pressa dos que iam em busca de seu ganha pão. Ele, como quase todos os outros, enfrentaria a rotina da segunda-feira.

    Chegou a seu estabelecimento – panificadora bem frequentada por quem quer matar a broca com delícias regionais e comidinha caseira. Depois de dar uma geral em funcionários, dar uma checada se tudo estava nos conformes na mesa com comidas, sentou-se no lugarzinho de sempre, e, por detrás do vidro que separa a caixa, preparou-se para somar valores em comandas e cobrar o que lhe era devido por clientes.

    Por volta das 8h30, quando o movimento é maior, chegou a vez de atender um rapazinho com cara de sono, barba por fazer, jeito de quem nunca botou um prego numa barra de sabão, mas com ares de quem é o dono do mundo. Típico filhinho de papai.

    Somados os valores, o homem do caixa anunciou: R$ 4,30.
    Preguiçosamente, o cliente puxou a carteira do bolso da bermuda e, dela, um cartão de plástico. Baixinho, preguiçosamente, determinou: “Crédito”.

    O empresário suou frio. Acinte. “Comprar R$ 4,30 e pagar com cartão de crédito?”, pensou. Duas outras pessoas se postavam na fila para pagar suas despesas, quando o rapazinho do cartão pediu: “Parcele em três vezes, por favor”.

    Indignado, quase espumando de raiva, Pimentel obedeceu. Digitou números, emitiu sua via, deu comprovante para o cliente e ironicamente “agradeceu a preferência”.

    Enquanto atendia o próximo da fila que se formava, Pimentel lembrou-se do sonho que tivera antes de sair de casa. Ao somar valores de nova comanda, questionou-se: “Será que o sorriso que aquela mocinha de olhos e biquíni azuis me enviou eram pura educação ou ela ‘tava dando mole’?”

    - Próximo!

     

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    Aroldo Pinheiro

    Quanto vale uma vida humana?

    Depois de fazer meu check in, saí do saguão para alimentar os pulmões com nicotina. Nisso, quase perco o voo. Corri contra o tempo, atropelei pessoas na esteira rolante, mas consegui chegar a meu avião.
    No dia 22 de março, fui o último a embarcar no voo JJ 4674 da TAM, Brasília a Boa Vista.

    Avião lotado. Em céu de brigadeiro, absorvido nas palavras cruzadas, gritos ecoaram de poltronas mais à frente: “Por favor, tem algum médico a bordo?” Depois de afastar curiosos, com dificuldade, o jovem voluntário chegou a uma idosa que passava mal.

    Estávamos voando há uns 40 minutos. O comandante anunciou: “Senhoras e senhores, pedimos que mantenham a calma. Uma passageira está com problema de saúde e teremos que aterrissar no aeroporto de Palmas para dar-lhe assistência apropriada”. A comissária prosseguiu com aquelas instruções para pouso e, depois de violenta pancada contra a pista, o avião taxiou.

    Enquanto paramédicos entraram na aeronave para retirar a idosa que precisava de socorro, pessoas cá do lado de dentro comentavam o ocorrido.

    Muitos reclamavam da atitude tomada pelo comandante do Airbus 320A. Alguns falavam em compromissos inadiáveis e prejuízos causados irrecuperáveis.

    Ao celular, um velho gordo, gritava para que todos ouvissem que ia processar a companhia, “pois, se não estivesse em Boa Vista às 14 horas, perderia mais de 500 mil reais”. Nem sei se ele falava com alguém ou se queria só aparecer para os outros passageiros.

    Um jovem com barba espessa e muitas tatuagens nos braços grossos, característicos de fisiculturistas, vomitava conhecimentos sobre procedimentos de voos: “Esse comandante foi muito irresponsável. Por causa de uma velha, ele colocou em risco a vida de 170 pessoas. Vocês sentiram o impacto na pista? Foi porque o avião estava muito pesado. Os tanques do combustível estavam muito cheios para que ele aterrissasse”.

    Não ouvi ninguém defender a atitude que o comandante Nascimento tomou. Ali, pensei: “Se fosse a mãe ou o filho de um desses reclamantes que precisasse de atendimento médico, será que eles condenariam a decisão que o responsável pela aeronave e seus passageiros tomou?”
    A atitude do comandante Nascimento causou prejuízos à empresa aérea. Quantos litros de combustível foram consumidos na aterrissagem e na decolagem? Qual o desgaste de pneus? Quanto a TAM teve que pagar pelo uso da pista e do aeroporto? No solo, quantas pessoas foram mobilizadas para retirar a idosa que passara mal e conduzi-la para assistência apropriada?

    Certamente alguns milhares de reais foram despendidos com a atitude do comandante Nascimento.

    Para os materialistas que se sentiram prejudicados com a decisão do comandante, uma pergunta: quanto vale uma vida humana?

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    Aroldo Pinheiro

    Os ovos do juiz

    Território do Rio Branco, início da década de 1960. Em Mucajaí, incomodado com chifres ou com a suspeita de tê-los, agricultor, matou a mulher com golpes de enxada na cabeça. Naquele tempo, o crime mais violento ocorrido nesta Terra de Makunaima.

    Sem fórum na cidade, o julgamento de Nilo dar-se-ia no salão da União Operária Beneficente. A cidade parou para assistir ao embate entre o promotor, Aristarte Leite, e Nozinho, advogado de defesa.

    Na mesma hora em que os atores se posicionavam para o julgamento. Zeca Pato-rouco saía de casa com a missão de vender 12 ovos e, com o apurado, comprar carne para que sua mãe recheasse pastéis. Deliciosos, muito apreciados na pequena cidade.

    Enquanto Pato-rouco batia de porta em porta oferecendo a produção da galinha pedrês, testemunhas era m ouvidas no quente salão, desprovido de qualquer sistema de refrigeração. O juiz, doutor Trindade, tinha sido acomodado de costas para a janela, de maneira que a brisa da manhã refrescasse o corpo abafado por paletó e toga.

    Os nãos ouvidos por Zeca foram muitos. Na União Operária, o roteiro do julgamento de Nilo era seguido ao pé da letra. Doutor Aristarte, caminhando de um lado para outro, sobre a prótese de madeira que substituía membro inferior perdido em acidente, desancava o acusado, “monstro covarde que matou indefesa dona de casa”.

    Quase duas da tarde. No momento em que o rábula Nozinho apresentava seus argumentos para os jurados, Zeca voltava pra casa com os doze ovos dentro do já amarfanhado saco de papel. Ao ver muitos carros – bem uns oito – estacionados na frente da União Operária, o menino resolveu encostar: “Quem sabe vendo os ovos por aqui?”

    Público cansado, jurados sonolentos, o juiz pingava dentro das vestes. Doutro Aristarte, com o paletó de linho branco encharcado de suor, rebatia o advogado de Nilo: “Defesa da honra? Esse crápula não tem honra pra defender. O covarde tirou a vida da companheira sem dar-lhe de chance de explicar-se...”

    Sem entender o que se passava no salão, Zeca Pato-rouco pendurou-se na janela, esticou o bracinho e cutucou a costa daquele estranho usando estranho e negro vestido godê. O meritíssimo voltou-se para ver de quem partia a insolência e sensibilizou-se quando ouviu a voz fraquinha do menino magrelo:

    - Moço: o senhor não quer comprar uma dúzia de ovos? É só 20 cruzeiros...

    Faminto, sonhando com o almoço, o juiz levantou-se, levantou a saia, meteu a mão no bolso, entregou ao garoto uma nota de vinte cruzeiros, colocou o saco com ovos em cima da mesa e voltou a atenção para a fala do promotor. “Daqui a pouco, vou me esbaldar em farofa com arroz e feijão”, pensou.

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    Aroldo Pinheiro

    Meu vizinho

    Conheci o meu vizinho. Gente boa.
    Não, não é um novo vizinho. Há mais de dez anos moramos próximos um do outro.
    Nossas conversas, até segunda-feira, se resumiam a simples bons-dias, boas-tardes, boas-noites. Quando passou disso, no máximo, uma reclamação do calor.
    Com o apagão de segunda-feira, pela primeira vez coloquei cadeira na porta da rua e, enquanto fumava cigarros, abandonei-me em pensamentos vazios projetados na espirais de fumaça. De alguma forma, tentava não ficar nervoso com a falta que o Jornal Nacional me fazia.

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    Aroldo Pinheiro

    A donzela e o despacho

    Passava pela mesma calçada e parava sob a mesma janela na esperança de que ela se debruçasse no umbral e lhe desse um sorriso. Nada, pois mesmo quando já estava enfeitando o batente com sua beleza, fazendo dele uma tela de pintura, bastava vê-lo para sumir. Procurou um pai de santo.

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