O escritor Ariano Suassuna dizia que toda cidadezinha do Nordeste tem um doido, um bêbado e um mentiroso marcantes. Na Boa Vista dos anos 1960, Gil era um dos nossos doidos. Retardado mental, feio, grande, rechonchudo, malcheiroso, com muitos dentes podres na boca, epilético no tempo em que se acreditava que a epilepsia fosse transmitida pelo vento, Gil, sempre perseguido com chacotas pela molecada mais afoita e sem princípios, causava medo na população. E pavor na minha mãe.
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Fim de tarde, mamãe bota fina saia rodada de tafetá marrom, blusa de linho branco com folhos e babados, bolsa e sapatos de saltos altos pretos, grandes e elegantes óculos escuros e, pelo canteiro central da avenida Getúlio Vargas, se dirige à avenida Jaime Brasil, onde meu pai tinha uma loja.
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Depois de cruzar a rua Coronel Pinto, ela vê, dois quarteirões adiante, na altura do muro da escola Lobo D’Almada (onde hoje está estabelecida a TV Roraima), Gil, caminhando em sentido contrário. “Ai, meu Deus!” E, rapidamente, dona Neuza dirige-se à calçada do lado oposto da via.
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Agora, apressando os passos, rezando, pedindo proteção a Nossa Senhora de Fátima, sem olhar para os lados, tudo que ela queria era passar longe do doidinho. Tentando vencer a última quadra até seu destino, quando chega na frente do prédio do IBGE, ela sente uma mão tocando seu ombro e ouve a voz rouca de Gil dizer, quase no cangote dela: “Tu nem fala, né, sua boçal?”
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Mamãe diz não se recordar do que fez logo depois do cumprimento de Gil. Lembra-se de estar sentada, com dona Bety Barros, que tinha lanchonete vizinha à loja de meu pai, abanando-a e lhe dando água com açúcar.
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